Uma frase que aponta caminhos e muda tudo. O gatilho para a Residência Belojardim deste ano, com o artista plástico Carlos Mélo, foi “Aquele povo que vive ali”. A frase fazia referência à comunidade quilombola do Barro Branco, no município de Belo Jardim, agreste pernambucano.
Carlos estava no SESC da cidade, com a mostra “Como se fala Agreste”, em 2013, e foi pego de surpresa com o modo como as pessoas do lugar se referiam aos quilombolas. “Fiquei muito impressionado com isso. Passou algo como se eles fossem um povo disperso, solto, sem identidade. Quis entender o que acontecia, chegar mais perto, saber de fato quem era ‘aquele povo que vive ali’. E veio a ideia do documentário”, conta.
Este ano o projeto de vídeo-arte foi apresentado e aprovado por Cristiana Tejo e Kiki Mazzucchelli, do Instituto Conceição Moura – que promove a Residência. Era uma forma, segundo Carlos, de oferecer um monumento à resistência dos quilombolas.
Para tanto, era preciso envolver os moradores do Barro Branco no projeto, tê-los como protagonistas dessa história, que lhes pertence. Então, a cerca de ossos começou a ser pensada. Com 4 metros de altura e 20 de comprimento, foi erguida entre a terra dos quilombolas e uma propriedade particular. Tudo devidamente documentado.
O roteiro ficou sob a responsabilidade do carioca Sérgio Porto, a fotografia com Camilo Soares. E Carlos foi desenvolvendo um trabalho de “aproximação mais sensível” com os moradores.
“O que me interessa é saber como eles estão, como se sentem, como vivem. Fiquei dez dias completamente imerso, antes de partir para a construção da cerca, ouvindo e conhecendo as pessoas. Era preciso saber quem era ‘aquele povo que vive ali'”, reforça.
O resultado foi o encontro com Elaine Lima, uma jovem líder, de 30 anos. Solteira, mãe de três meninas. Durante o dia, ela se entrega às ocupações da comunidade, lutando para resolver questões das 70 famílias que moram na localidade. À noite, coloca um uniforme e vai à escola. Ela é a “voz” do filme e mostra que os quilombolas do Barro Branco não são mais “aquele povo que vive ali”. Têm identidade e estão organizados.
Durante o tempo em que começou a conhecer de perto essas pessoas, Carlos soube que a tenda que servia de base para reuniões e debates sobre questões dos moradores havia passado por dois incêndios (provocadas por moradores contrários a qualquer tipo de transformação). “Resolvi que uma das obras da minha intervenção seria reconstruir a tenda. Era preciso reerguer esse “corpo-tenda”.
E a cada passo, mais o projeto se construía e reconstruía. E tudo que o artista não queria era o “lugar-comum”. “Tratar, falar sobre uma comunidade de modo intelectual é tudo o que a elite intelectual quer. E eu queria algo mais profundo. Não era chegar, fazer uma fogueira e reunir as pessoas em volta. Não, porque lá não tem fogueira, tem celular e TV de LED. Assim o filme se encaminhou como eu queria, falando sobre uma comunidade em construção, em troca comigo. Crescendo, fluindo de forma muito bonita”, lembra.
Além do filme e da cerca – construída com 4 mil ossos recolhidos em parceria com os quilombolas e a população de Belo Jardim – Carlos também ofereceu oficina de vídeo aos jovens locais. “A comunidade virou um canteiro de obras.
Escultura sendo montada, filme sendo feito, ações acontecendo, a ocupação da Fábrica Mariola. A Residência, como um todo, trata dessas questões. E estamos fechando da melhor maneira possível. A minha aproximação foi pelo afeto. Foi emocionante ver como eles participaram. As transformações são mínimas, mas já é um disparo para mudanças maiores”, diz.
Ossos e Ancestralidades
Sobre o espírito da Residência, Carlos cita a líder quilombola Elaine. “Quando ela ia buscar os ossos para montarmos a cerca, ela me disse que era como se trouxesse de volta uma ancestralidade que nunca deveria ter saído de lá. Isso é muito forte, representativo. Pensei nessa reconstrução da identidade e vi o osso como o barro branco (que é o nome da comunidade e que reconstrói o lugar)”, reforça.
O filme Barro Oco, de 50 minutos, será lançado no dia 11 de julho, no Cine Jardim, Centro de Belo Jardim.
A Residência Belojardim também conta com uma exposição no SESC da cidade, que retrata a trajetória do artista.