O Museu de Arte Sacra de Pernambuco (Maspe), que acaba de completar 40 anos e lançar um catálogo em celebração à data, está preparando uma exposição com um acervo especial em homenagem aos santos negros. À frente do projeto estão o gestor da casa, Padre Rinaldo Pereira dos Santos, o historiador Iron Mendes e a arquiteta Dió Diniz. Até o momento, aproximadamente 20 peças foram resgatadas pelo padre – que fez uma verdadeira peregrinação por igrejas, com o apoio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe).
Novembro, mês da Consciência Negra, é a provável data de abertura da mostra, que ainda depende de recursos para acontecer. Mas tudo já está caminhando a passos largos, de acordo com o Padre Rinaldo. “Pernambuco é um referencial (sobretudo Recife, Olinda, Recife e Igarassu) quando se trata de arte sacra. Em Igarassu temos a igreja mais antiga do Brasil de pé ainda. E somente há 41 anos surgiu a ideia de se organizar o Museu de Arte Sacra de Pernambuco. Tínhamos muita coisa na Igreja de Conceição dos Militares, na Igreja do Divino Espírito Santo, tem o Museu da Rua do Imperador (da Ordem Terceira do Carmo). Mas os três não reúnem 5% do nosso acervo sacro. Então, é muito importante que a população tenha acesso, que possamos tornar o Maspe uma referência”, diz.
Para isto, um trabalho sério, de muita busca e dedicação vem sendo feito ao longo dos anos, segundo ele. A caminhada vem sendo feita desde a inauguração do museu, em 1977. O primeiro passo foi a busca de acervo nas igrejas de Olinda, depois a adaptação do prédio (que serviu de residência episcopal) à nova proposta. “Ao longo dos anos o Maspe esteve muito ativo e em alguns momentos, mais tímido. Para ser referencial tem ainda que dar muitos passos. O que temos para colocar em exposição é três vezes o que está no catálogo (recém-lançado pela Cepe Editora)“, revela.
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Santos negros
O projeto da exposição com acervo voltado exclusivamente aos santos negros é inédito em Pernambuco. E essa ideia vem inquietando o gestor do Maspe há alguns anos, desde que ele encontrou algumas imagens no Iphan.
“A santidade está em todas as cores e todas as raças. Há um clamor em relação ao descaso com o povo negro. Dos jovens assassinados, quase 70% são negros. Nos presídios também, a maioria da população carcerária é negra. E outro ponto muito forte é a intolerância religiosa. O desrespeito às religiões de matriz africana. Hoje os terreiros de candomblé clamam ao Iphan para serem tombados, para que possam ser protegidos. Essa animosidade tem sido desenvolvida por muitos movimentos religiosos radicais, que se utilizam de alguns símbolos e alguns ritos (que são sagrados para aquelas pessoas), demonizam isso, ganham dinheiro em cima disso e instigam a destruição. Nossa exposição terá um papel social, cultural e religioso importantíssimo no nosso Estado”, pontua o Padre Rinaldo.
O catálogo lançado pela Cepe traz um capítulo específico para apresentar e dar destaque ao acervo dos santos negros. Isso para mostrar a importância desses santos e sair um pouco das representações europeias. “Ao longo da história, a representação dos santos negros não recebeu a devida importância, por todo um processo triste de discriminação e preconceito. Os santos representam um laço afetivo com Deus e Deus não tem raça, não tem cor. Há imagens, inclusive, de Jesus Cristo negro, devido a essa questão da representatividade. E existiram vários santos negros. Entre eles, São Benedito, Baltasar (um dos Reis Magos) e Santo Antônio de Cartagerona. Essa exposição vai fazer com que a população os descubra”, diz o historiador do Maspe, Iron Mendes.
A arquiteta Dió Diniz conta que a mostra ocupará três salões no térreo do museu e que as peças estão sendo reunidas nas buscas do padre Rinaldo. “O acervo é lindíssimo. Estavam em igrejas em ruínas e no Iphan. Será uma exposição ímpar, a que mais reúne santos negros no Brasil. Queremos criar um espaço que toque a religiosidade das pessoas, onde possamos nos questionar sobre ela. É esse clima de mistério, de respeito à espiritualidade que estamos queremos criar aqui no museu. O espaço arquitetônico é belíssimo, a intervenção tem que ser muito sutil. A proposta é que o espaço abrigue a exposição, mas de forma bem limpa. O que tem que se destacar e aparecer são os santos. Vamos trabalhar com uma iluminação muito pontual, que ressalte esse clima místico. Que as pessoas olhem com ar de oração, de agradecimento”, antecipa.
480 anos de história
De acordo com o historiador Iron Mendes, o Maspe – equipamento cultural proveniente da colaboração entre a Arquidiocese de Olinda e Recife e a Fundarpe – destaca-se por ter já em seu prédio um patrimônio de grande relevância histórica. Sua origem data dos primórdios da colonização. Foi a antiga Casa de Câmara, construída por volta de 1537, no governo de Duarte Coelho. Em 1693 tornou-se oficialmente a residência episcopal, sob a responsabilidade do bispo Dom Matias de Figueiredo.
Passou por restauro entre 1974 e 1977, quando foi inaugurado o Maspe, abrindo ao público no dia 11 de abril.
Lugar vivo
“Quando fui apresentado pela primeira vez a um museu, na minha adolescência, ouvi da professora que ali estava um lugar onde se guardavam coisas fora de uso e que servem para lembrar o tempo em que elas tinham valor. Conceito completamente equivocado. Hoje entendo que o museu é um organismo vivo. Não é um depósito. Ele interage com a gente”, conta o Padre Rinaldo.
Para ele, um museu de arte sacra tem a missão de comunicar o sagrado, o belo, o antigo e o novo das expressões de fé de um povo. Existe para tornar o sagrado acessível e palpável.
E sendo um lugar vivo e de interação, não há como caminhar sem a presença da comunidade. Por isso, assim que assumiu a gestão da casa, o Padre Rinaldo foi até as pessoas e fez as pessoas entenderem o museu. “Fui escutar na praça, para ouvir o que o povo dizia sobre o museu, sem me identificar. Perguntava aos guias o que era o museu e eles me diziam que era uma casa velha que tem um bocado de santo guardado, mas só vivia fechado e que devia ser mal assombrado. Trouxemos as pessoas. Fizemos o resgate da autoestima do museu. Vieram os guias, as tapioqueiras, em visita guiada, e começaram a sentir-se parte do museu”, lembra o gestor.
Segundo ele, os recursos são escassos, mas a criatividade multiplica tudo. As exposições, os colóquios e os projetos não param. Através da parceria com o Iphan, a Fundarpe, a Arquidioce e a Prefeitura de Olinda, conseguiram aprovar o projeto de melhorias no prédio, na Lei Rouanet.
“Temos muita esperança para o Maspe. Um museu de arte sacra será sempre um espaço de resistência àqueles que querem negar a sacralidade da vida, do cotidiano e da história. Impossível contar a história do Brasil, de Pernambuco, sem a influência da arte sacra. A laicidade do Estado é extremamente positiva. É importante esse respeito. Mas o Estado não é ateu. Laicidade e laicismo são diferentes. Laicidade deve ser promovida e cultivada. Laicismo é a negação de qualquer traço de religiosidade de um povo. Quem quer dizer que o Estado é ateu está enganado. O texto da Constituição começa invocando o nome de Deus. A bandeira de Pernambuco traz o desenho de uma cruz. O museu é um resgate dessa memória. Se o povo perde o seu referencial, perde a sua identidade”, conclui.